Judicialização do tratamento de crianças com TEA expõe lacunas no sistema de saúde

Nos últimos anos, o tratamento inadequado de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil tem gerado um aumento expressivo de reclamações e ações judiciais, afetando tanto famílias quanto operadoras de planos de saúde. Somente entre janeiro e agosto de 2024, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) recebeu mais de 10 mil queixas relacionadas ao tratamento de crianças autistas com até 12 anos de idade. Esse número é o segundo maior dos últimos cinco anos e destaca uma questão sensível e urgente no sistema de saúde suplementar do país.

Os relatos de pais, como o de William Bezerra, que enfrentam a negativa ou a falta de especialistas adequados para o tratamento de seus filhos, evidenciam a gravidade do problema. Bezerra, pai de uma criança de 7 anos com TEA, teve que recorrer à Justiça para garantir que o plano de saúde cobrisse o tratamento indicado por profissionais especializados. “O plano de saúde disponibilizava profissionais sem formação específica sobre o transtorno. Eu precisei pagar por conta própria durante um ano até ganhar a ação judicial”, conta Bezerra.

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Crescimento da judicialização

O aumento de judicializações no Brasil envolvendo o tratamento de crianças autistas reflete uma falha estrutural. Segundo dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), entre 2018 e 2021, 69% das ações envolvendo terapia para tratamento de autismo resultaram em condenação contra os planos de saúde. A maioria dessas ações está relacionada à negativa de cobertura para tratamentos multidisciplinares, essenciais para o desenvolvimento de crianças com TEA.

Especialistas da área de saúde apontam que essa judicialização frequente cria um impasse no setor, com as operadoras alegando dificuldades em oferecer tratamentos que vão além do escopo básico previsto nos contratos. “Essas ações geralmente envolvem terapias recomendadas por médicos particulares, muitas vezes sem laudos compatíveis ou adequados”, explica Emerson Medeiros, advogado especialista na defesa de operadoras de saúde.

Planos de saúde e falta de diretrizes claras

A falta de diretrizes claras para o tratamento de crianças autistas é um dos principais desafios enfrentados pelas famílias e operadoras de saúde. Em 2022, a ANS passou a exigir que terapias baseadas nos métodos ABA (Applied Behavior Analysis), Denver e Integração Sensorial, entre outras, fossem cobertas pelos planos de saúde. No entanto, segundo o diretor técnico-médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Cássio Ide Alves, muitas dessas terapias não têm diretrizes científicas bem estabelecidas, o que cria incertezas na hora de determinar a frequência e o tipo de tratamento.

“Não há uma orientação unificada sobre qual é o melhor tratamento para cada criança com TEA. O que vemos são muitas clínicas que utilizam o subterfúgio da falta de diretrizes para sugerir tratamentos desnecessários e caros, prejudicando tanto as operadoras quanto as próprias crianças”, afirma Alves. Esse cenário, segundo ele, favorece o aumento de reclamações e judicializações, já que os pais, muitas vezes, sentem que seus filhos não estão recebendo o atendimento adequado.

O impacto nas famílias de crianças com TEA

A judicialização do tratamento para crianças autistas tem um impacto profundo nas famílias, gerando traumas emocionais e financeiros. Ingrid Monte, mãe de uma criança de 8 anos diagnosticada com TEA, enfrentou dificuldades ao tentar garantir a cobertura do plano de saúde para o tratamento do filho. Após mudar de plano, ela precisou arcar com um custo elevado e entrar com uma ação judicial para garantir que a terapia ocupacional de integração social fosse incluída.

Monte ressalta que muitas mães de crianças autistas evitam recorrer à Justiça por medo de represálias ou pela falta de recursos financeiros. “Muitas mães têm medo de o plano descredenciar a criança ou de não conseguirem pagar um advogado. Queremos um tratamento eficaz, não luxo. As clínicas precisam ser funcionais”, desabafa.

Além disso, Ingrid enfrentou obstáculos para garantir que seu filho recebesse o número de horas de terapia indicadas por médicos. A receita incluía 20 horas semanais de terapia ABA, mas as clínicas do plano não estavam dispostas a cumprir essa carga horária. “É uma luta constante para garantir o que meu filho precisa. O sistema de saúde não está preparado para lidar com as demandas das crianças autistas”, completa.

Eficácia dos tratamentos e formação de profissionais

A Resolução Normativa 539 da ANS estabelece que os planos de saúde devem oferecer profissionais qualificados para realizar os tratamentos indicados para crianças com TEA. No entanto, a advogada Carla Bertin, especialista em autismo, ressalta que a oferta de especialistas é insuficiente. “Os planos de saúde oferecem, na maioria das vezes, profissionais generalistas, sem a formação adequada para lidar com as especificidades do espectro autista”, explica Bertin.

Essa carência de profissionais capacitados leva muitas famílias a buscarem soluções na Justiça, o que sobrecarrega o sistema e coloca em risco a continuidade dos tratamentos. Segundo dados da ANS, entre janeiro e agosto de 2024, 337 reclamações sobre suspensão ou rescisão de contratos relacionados ao tratamento de TEA foram registradas, demonstrando a gravidade do problema.

A judicialização do tratamento de crianças autistas no Brasil expõe lacunas graves no sistema de saúde suplementar. A falta de diretrizes claras, a escassez de profissionais especializados e a burocracia enfrentada pelas famílias criam um cenário de incertezas e sofrimento.

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