“Pé de Chinesa”: entenda as críticas de atores e o impacto no futuro da arte

Nos últimos anos, a inteligência artificial (IA) tem avançado em diversos setores, inclusive o entretenimento. Um dos casos mais recentes que gerou debate foi a novela “Pé de Chinesa”, criada inteiramente por IA, desde o roteiro até a escolha dos diálogos.

A produção causou controvérsia, gerando críticas de atores e outros profissionais da indústria artística. A discussão vai além da qualidade narrativa e técnica da obra, levantando preocupações sobre o impacto da automação no futuro da arte e nos empregos de quem trabalha com cultura.

O que é a novela “Pé de Chinesa”?

“Pé de Chinesa” é uma telenovela fictícia, criada como um boato ou fanfic por internautas brasileiros. O enredo, personagens e diálogos foram gerados com base em grandes volumes de dados, incluindo novelas de sucesso, tendências de audiência e análises de mercado. A ideia era gerar entretenimento entre os usuários do X/Twitter, mas a situação fugiu do controle e furou bolhas.

No entanto, a iniciativa recebeu uma enxurrada de críticas logo após o lançamento, especialmente por parte dos atores. Muitos profissionais da dramaturgia expressaram insatisfação com a falta de nuances emocionais, além das praticas de racismo estrutural.

Por que os atores criticaram “Pé de Chinesa”?

Atores que realmente se declaram amarelos se revoltaram com a trama fake e fizeram um manifesto para explicar que a piada não tem graça. “Racismo estrutural não é engraçado”, sentenciaram. O texto foi compartilhado nas redes sociais dos artistas e na F5, e foi assinado pelos atores Ana Hikari, Anna Akisue, Aya Matsusaki, Bruna Aiiso, Bruna Tukamoto, Carlos Chen, Claudia Okuno, Jacqueline Sato e Tati Takiyama.

Atores que realmente se declaram amarelos se revoltaram com a trama fake "pé de chinesa" e fizeram um manifesto para explicar que a piada não tem graça. "Racismo estrutural não é engraçado", sentenciaram. O texto é assinado pelos atores Ana Hikari, Anna Akisue, Aya Matsusaki, Bruna Aiiso, Bruna Tukamoto, Carlos Chen, Claudia Okuno, Jacqueline Sato e Tati Takiyama e foi compartilhado nas redes sociais dos artistas e na F5.
Atrizes amarelas se juntam e se pronunciam sobre como “Pé de Chinesa” é uma forma de racismo estrutural. Foto: Reprodução/Instagram

Confira o texto publicado pelos artistas:

Por que não estamos rindo de “Pé de Chinesa”? Adoraríamos rir com vocês, mas não sabemos rir quando uma piada toca profundamente a nossa existência.

Nas últimas semanas, viralizou uma abertura fake, feita por inteligência artificial, de uma suposta novela da Globo, intitulada “Pé de Chinesa”. E, depois disso, uma trend foi criada, na qual várias pessoas, incluindo artistas de grande alcance na mídia, começaram a praticar yellowface, dizendo que estavam no elenco da teledramaturgia.

Perto do fim do X (antigo Twitter), essa foi a última piada viralizada na plataforma e que, depois, se estendeu para outras redes. E, agora, vamos explicar o porquê desse meme e dessa trend não serem engraçadas e como reforçam o racismo recreativo contra pessoas amarelas (pessoas que descendem do leste e sudeste asiático).

Não é de hoje que se utilizam de nossos corpos, etnias e raça para sermos alívio cômico. A pesquisadora Marcia Yumi Takeuchi reuniu no livro “Imigração Japonesa nas Revistas Ilustradas – Preconceito e Imaginário Social (1897-1945)” diversas charges com textos e imagens que se publicaram ao longo da história do nosso país, criando o imaginário caricato que as pessoas têm sobre os japoneses (e também chineses) que se perpetua até hoje.

Segundo Maria Luiza Tucci Carneiro (1994), “as manifestações racistas podem ser identificadas no nível das ideias, quando estão diretamente ligadas ao inconsciente coletivo, povoando os arquétipos, alimentados por mitos ou representações deturpadas do real que, repetidos constantemente, induzem o indivíduo a elaborar uma interpretação falsa de um momento histórico ou de um grupo.”

Ela segue: “Nesse sentido, as imagens se prestam enquanto parte do sistema simbólico, para a legitimação da ordem vigente. Para que a ideologia racista se converta em prática, é necessário que esta encontre condições propícias para circular: a doutrina se converte em discurso acusatório que, reforçado insistentemente, consegue angariar adeptos, vindo a se transformar em fenômeno de massa.”

As imagens criadas por essa novela “Pé de Chinesa” trazem diversas camadas que não só reforçam de maneira estereotipada a forma como as pessoas nos enxergam e nos tratam, mas também resgatam problemas históricos e políticos que nossos ancestrais sofreram ao longo da história mundial, e também especificamente brasileira.

A primeira delas é o próprio título: “Pé de Chinesa”, uma alusão ao termo Pé de Lótus ou “Lianzu”. Historicamente, era uma prática tradicional na China durante a Dinastia Song em meados do século 10, no qual as meninas chinesas tinham seus pés enfaixados de maneira apertada a ponto de quebrarem os ossos dos dedos e dobrando-os sob a planta do pé. Assim, elas teriam os pés bonitos e indicavam que pertenciam a famílias ricas, pois esse era o padrão de beleza da época. O Pé de Lótus significa um passado de muita dor e opressão de gênero para muitas mulheres chinesas.

A partir daí, utilizando-se de um termo e de diversos gatilhos ancestrais, começam a se destacar outros tipos de problemáticas. Mesmo no vídeo de abertura, que muitos justificaram dizendo que era uma sátira às ações antigas da TV Globo, como uma forma de criticar as novelas reais “Sol Nascente” e “Negócios da China”, por exemplo, a vinheta de “Pé de Chinesa” comete os mesmos problemas.

Como preconceitos linguísticos e yellowface (quando uma pessoa não-amarela interpreta uma personagem do leste ou sudeste asiático). E, logo em seguida, de uma maneira viral, as pessoas também aproveitaram o embalo e repetiram essas práticas. Vamos esmiuçar e exemplificar o que estamos falando.

A trilha sonora já fala de trabalhar na feira e “zoin puxado”, dois estereótipos típicos e que todo mundo já está cansado de ouvir, assim como os termos “pastel de flango” e “ling ling”, que reforça um preconceito linguístico, que ridiculariza gerações passadas que migraram para o país e tinham dificuldades em se adaptar às pronúncias de palavras da língua portuguesa do Brasil. Com isso, na trend, artistas também se aproveitaram disso e utilizaram da fonética chinesa para criar nomes de seus personagens: Na Malia e Keyn-Dera, por exemplo. E no enredo é possível destacar nomes como: Xu Lee, Tia Ping, Keen Xong, Xa Tao.

Teve gente até que colocou nomes como Guioza Tempurá (como se fossem palavras chinesas —pasmem: não são). O que também desencadeia em outro preconceito, de que japonês e chinês “é tudo a mesma coisa”. Tendo em vista que as atrizes Ana Hikari e Danni Suzuki, de ascendência japonesa, também foram inseridas na piada como parte do elenco de origem chinesa.

Os estereótipos estão também nas profissões, as pessoas que entraram na trend começaram a trazer as personalidades de suas personagens fictícias através de profissões como vendedores de pastéis, de lojas de R$ 1,99, drag queen, gueixa, dona de academia de kung fu etc.

E, embora pareça uma ação inofensiva (“ah, é só uma brincadeira”, como dizem), isso desencadeia diversas questões que precisam urgentemente ser observadas, dialogadas e refletidas.

Adilson Moreira, pós-doutor em direito, cunhou o termo “racismo recreativo”, e em seu livro destaca que “o uso do humor para produzir descontração está amplamente presente na atividade recreativa favorita dos brasileiros, embora as pessoas se recusem a interpretar esses atos como ofensas raciais”.

Ele ainda destaca que, quando alguém comete racismo recreativo, esse alguém se justifica dizendo que é uma ação benigna, feita apenas por diversão, por mera brincadeira, essa “discussão sobre essa alegação tem relevância significativa em uma nação que adquire consciência cada vez maior de que a circulação de ideias depreciativas sobre grupos minoritários impede que eles tenham proteção jurídica e respeitabilidade social”.

A escritora Bell Hooks, em “Olhares Negros – Raça e Representação”, afirma que “as imagens desempenham um papel crucial na definição e no controle do poder político e social a que têm acesso indivíduos e grupos sociais marginalizados. A natureza profundamente ideológica das imagens determina não só como outras pessoas pensam a nosso respeito, mas como nós pensamos a nosso respeito.”

Tanto bell hooks como Adilson Moreira, são pessoas negras, de muita credibilidade acadêmica e de uma vasta pesquisa sobre raça e ativismo antirracista, ambos em seus livros falam sobre questões de pessoas pretas mas, mesmo assim, enfatizam as vivências de outras minorias raciais, e pessoas asiáticas sempre são citadas em suas obras. Uma referência de Moreira, por exemplo, é o sociólogo Michael Omi que, junto a Howard Winant, propôs o conceito de projeto racial.

“Para esses autores, o racismo é uma ideologia e uma prática que está em constante transformação, razão pela qual ele pode assumir diferentes formas em diferentes momentos históricos. Observamos em todas as suas manifestações como diferenças de status cultural e status material se reforçam mutuamente na reprodução da marginalização de minorias raciais”, reforça Moreira, destacando assim, que o racismo recreativo é uma prática que a branquitude descobriu para não se responsabilizar sobre o ato cometido, muito menos ser penalizado por isso.

Jornalistas fizeram matérias em grandes veículos de comunicação, alegando que a Globo deveria ser inteligente e investir na ideia dessa novela fake. Porém, como citadas anteriormente, “Negócios da China” e “Sol Nascente” já foram protagonistas de grandes polêmicas sobre yellowface, mas não só. Houve casos, como “Caminhos das Índias”, que estereotipavam pessoas asiáticas marrons de ascendência indiana. Porém, tomando como base, todo ativismo antirracista, a empresa tem tomado mais cuidado e escalando artistas que representem de verdade suas raças e etnias. Um exemplo também de que equipes por trás das produções da emissora têm tido mais cautela, foi quando o canal Viva cortou uma cena de blackface na reprise de capítulos de Malhação que foi ao ar em 1998.

Não é engraçado quando o racismo recreativo toma uma proporção dessa, quando pessoas racializadas ou uma cultura se tornam piadas, memes e viralizam dessa forma. Se depois de todas essas explicações, você ainda estiver rindo, tenho uma notícia pra você: Você está sendo racista.

Impacto no mercado de trabalho

Com o avanço da IA em diversas indústrias, o temor sobre a substituição de trabalhadores humanos por máquinas já é uma realidade em setores como a manufatura, serviços e tecnologia. No entanto, a expansão da IA para o setor criativo, especialmente no mundo das artes e do entretenimento, levanta uma nova série de questões.

O uso de IA para criar roteiros, editar cenas e até gerar atores digitais ameaça desvalorizar o trabalho de milhares de profissionais. Roteiristas e diretores podem ser substituídos por algoritmos que criam tramas baseadas em padrões de sucesso. Atores, por sua vez, podem ver suas carreiras ameaçadas pelo uso de personagens digitais gerados por computador ou IA que cria figuras com performances pré-programadas.

Leia também: “Pé de Chinesa”: novela criada por IA viraliza nas redes

Segundo dados do Fórum Econômico Mundial, até 2030, cerca de 85 milhões de empregos podem ser substituídos pela automação em diversas indústrias, e o setor cultural não está imune a essa tendência. Se a inteligência artificial conseguir criar conteúdo de entretenimento de forma eficaz e econômica, as produtoras podem optar por essa alternativa, reduzindo os custos com mão de obra humana.

O futuro da arte: IA e criatividade

Além dos impactos econômicos e no mercado de trabalho, há uma questão fundamental sobre o que a IA significa para o futuro da arte. A criação artística é frequentemente vista como uma expressão única do espírito humano, algo que transcende fórmulas e padrões. Para muitos críticos, a tentativa de mecanizar esse processo é problemática, pois ameaça reduzir a arte a uma fórmula previsível.

A escritora Maria Clara Figueiredo, conhecida por suas novelas e peças de teatro, destacou a importância da criatividade e da espontaneidade na criação artística. “A arte precisa de erros, de improvisos, de momentos de epifania que surgem quando menos se espera. A inteligência artificial é baseada em dados e padrões; ela pode replicar o que já foi feito, mas dificilmente criará algo realmente novo e inspirador”, comentou em um artigo recente.

A discussão sobre o uso da IA na arte é complexa. Alguns argumentam que a inteligência artificial pode ser uma ferramenta poderosa para potencializar o trabalho humano ao ajudar roteiristas e diretores a explorar novas ideias e técnicas. No entanto, muitos temem que essa tecnologia, se usada sem critério, possa desvalorizar o papel dos artistas e transformar a produção cultural em uma simples operação de mercado.

O papel do público

Outro ponto relevante nessa discussão é o papel do público na aceitação de produtos criados por IA. Embora as críticas artísticas a “Pé de Chinesa” tenham sido intensas, é possível que, com o tempo, o público se acostume com conteúdos criados por inteligência artificial, especialmente se eles forem baratos e acessíveis.

Isso levanta uma questão ética: até que ponto o público está disposto a sacrificar a qualidade artística e a originalidade em troca de conveniência e entretenimento rápido? A forma como o público responde a essa pergunta pode moldar o futuro do setor cultural nas próximas décadas.

A novela “Pé de Chinesa” é um exemplo de como a inteligência artificial está cada vez mais presente no setor cultural. Embora a ideia de criar novelas e outras formas de entretenimento por IA seja fascinante, ela levanta sérias preocupações sobre a qualidade artística e o impacto no mercado de trabalho. Atores e outros profissionais da cultura estão certos ao questionar se a automação pode realmente substituir a criatividade humana sem prejudicar a essência da arte.

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