Os números recentes do impacto das bets e a reverberação do assunto, além da preocupação em matérias e relatos nas redes sociais, mostram o quão devastador são os efeitos na sociedade. Podemos traçar o perfil de quem joga, temos um indicador de quem são esses apostadores: geralmente, pobres e assalariados. Essas pessoas simplesmente não têm a opção de esperar! As necessidades desses indivíduos são urgentes, o desejo de melhorar de vida de quem nunca teve muita coisa é pra ontem.
Por isso, talvez uma das razões para entendermos o fenômeno esteja na incapacidade do nosso país em criar caminhos viáveis para que essas pessoas possam encontrar segurança social, projetos de vida e possibilidades de acesso à moradia e à educação, visando um projeto de vida a longo prazo.
Analisar o fenômeno da pobreza parece “fácil”, mas entender o dia-a-dia de quem vive da desesperança requer, no mínimo, empatia. Quantos de nós observamos mais atentamente as barreiras impostas a grupos sociais que ascendem nas últimas décadas?
Desde que milhões de pessoas pobres, negras e periféricas passaram a conquistar direitos no campo social — como uma bolsa mínima que garante renda e as tirem da pobreza absoluta, da insegurança alimentar ou como a conquista do direito a férias e ao décimo terceiro e, principalmente, o acesso à educação superior e técnica — algo incrivelmente perverso aconteceu. Uma espécie de retaliação de quem era contrário a esses avanços.
Desinvestiram em massa nos nossos sonhos
Uma parte da classe política e poderosa no Brasil foi, silenciosamente, retirando todos os direitos básicos de sobrevivência da população brasileira e desinvestindo em quem estava ascendendo nas últimas duas décadas no nosso país.
Esses mesmos direitos garantiram que, historicamente, os pais e avós de imigrantes vindos da Europa e do Oriente Médio, nos séculos XIX e XX, pudessem viver com segurança e acesso a direitos fundamentais, a partir desse momento, começaram a ser vistos como excessos aos que agora ascendiam socialmente e conquistavam espaços.
Esse período de segurança e estabilidade, que trouxe garantias fundamentais para aposentadoria, saúde e bem-estar a muitos brasileiros, aconteceu principalmente do final da era Vargas até o início dos anos 2000 e deixou de existir como conhecíamos nos anos 2010 em diante, por um Congresso cada vez mais liberal.
Um exemplo prático foi a visível desvalorização do ensino superior público. Com o avanço das camadas mais pobres à educação superior, no início dos anos 2000, nós começamos a assistir à aceleração do sucateamento das universidades públicas brasileiras, assim como as escolas públicas de um país que tem dois sistemas de ensino funcionando paralelamente.
De um lado o sistema das escolas particulares, que são um modelo inalcançável para milhares de brasileiros, e de outro a desvalorização dos espaços públicos de ensino, essa educação a qual a maioria da população terá acesso.
Hoje, muitos dos descendentes desses brasileiros que já foram beneficiados por políticas públicas nos séculos XIX e XX fazem parte da elite brasileira e falam abertamente em preparar seus filhos para estudar, exclusivamente, em universidades no exterior.
Quanto mais pobres, pretos e periféricos acessam esses espaços, menos prestígio e investimento essas instituições de ensino, principalmente as públicas, recebem. Esse fenômeno caminha, silenciosamente, e ninguém deseja falar que ele acontece em, literalmente, todos os setores da sociedade.
Mas, o que as bets tem a ver com isso?
Com a precarização do trabalho e a quase inviabilização de um projeto de reforma da previdência que entregasse ao trabalhador uma visão sobre seu próprio futuro, os brasileiros estão à deriva.
Se de um lado só conseguem enxergar um mar de dívidas e falta de oportunidades, do outro, a solução é arriscar a sorte em um mundo irreal de possibilidades, buscando melhorar de vida com prazeres momentâneos e o desejo de mudança.
Chamar as pessoas que jogam nas bets de “burras” e culpar somente a falta de educação financeira dessas pessoas: é ignorar o porquê estão jogando. A pergunta que talvez não estamos fazendo é sobre quem permitiu esse novo sistema? Como ele foi arquitetado? E, principalmente, a gente olhar pro nosso povo! Quem são essas pessoas que estão desesperadas por uma vida melhor? Pessoas que têm coragem de arriscar tudo que não têm pra receber um trocado?
Isso tudo ocorre paralelamente em uma sociedade em que redes sociais visibilizam quase, exclusivamente, a cultura da ostentação, enquanto alguns milhões desfilam seus jatos e vida luxuosa na nossa cara, o que resta é arriscar.
Veja bem, nem o futuro da moradia está mais garantido para a chamada “classe média”. Por exemplo, São Paulo é uma das cidades onde todos os dias flats de 25 e 40 metros quadrados são vendidos por até meio milhão de reais. Ou seja, não se você é jovem e deseja constituir uma família hoje, não dá nem para projetar viver com espaço e conforto. Não existe um projeto de cidade, casa e lar que abarque as necessidades básicas de quem quer viver e melhorar de vida!
Quem tem espaço para uma vida gourmet?
No lado financeiro, vemos várias instituições — principalmente as digitais, com juros altíssimos e taxas excessivas — além das tradicionais instituições privadas que exibem lucros incalculáveis para o cidadão comum. Essas instituições têm contribuído para que o brasileiro, que acorda todos os dias com a “faca no pescoço”, perca de vista a possibilidade de se livrar das dívidas, alimentando um sentimento de vazio e falta de pertencimento.
Para onde então esse cidadão vai caminhar? Coaches espetaculosos, pastores milagrosos e agora: as bets! Elas não são as vilãs da história sozinhas. Países como Inglaterra, Japão, Austrália e Estados Unidos sempre conviveram com casas de apostas, cassinos e afins… Talvez nosso maior vilão não esteja ali, na bet em si, mas seja o combo de impedimentos macabros que encurralaram nossa sociedade a viver sem perspectiva e ter que optar por esse vício.
As bets são a cereja do bolo! O vício é querer melhorar de vida, todo dia, e imaginar a si mesmo sem a corda no pescoço: “Quem sabe não é hoje que eu vou tirar a sorte grande?”
A pergunta mais cara que precisamos fazer é sobre quem foi que decidiu que a gente não vai aposentar nem comprar uma casa com espaço para plantar um tomatinho sequer?
Foi quem decidiu que as instituições financeiras poderiam extorquir nossa população e ainda que decidiu desinvestir na nossa segurança e abandonar nossos professores no sucateamento educacional. Claramente, quem o fez, foi minando as poucas oportunidades de uma geração inteira, após ver avanços significativos acontecendo nos primeiros anos desde 2002, e quando subiram ao poder resolveram fechar a torneirinha.
Foi gente que quando viu uma onda de pretos, pobres e periféricos conquistando o básico, decidiram que aposentar bem era só para pessoas iguais a eles. Infelizmente, “agora o aeroporto estava parecendo rodoviária”, lembram? Morar bem era só até que eles tivessem suas oportunidades, assim como comer e viver bem fosse algo possível para quem estava conquistando direitos agora.
As bets precisam de regulamentação? Sim, tudo precisa! Mas, precisamos analisar quem é que está impedindo o brasileiro de sonhar para viver desesperado enquanto faz um trocado qualquer, pensando que vai se dar bem rapidinho. Isso mostra que as reformas e os avanços para essa população são urgentes! Só não enxerga quem não consegue entender o tempo que estamos vivendo.
Quem foi que colocou a corda no pescoço do povão? Foi quem tirou o sonho da carteira assinada do trabalhador que dorme pensando que a vida é um jogo e se ele não fizer um dinheiro qualquer hoje, não vai conseguir pagar o próximo jogo para apostar a próxima tentativa de sair desse limbo amanhã.
Então, você e eu deveríamos estar nos perguntando, depois de tantos avanços desde 2002: quem é que, em 2024, está apostando na nossa derrota?