O recente memorando de entendimento para trazer gás dos campos de Vaca Muerta, na Argentina, parecia ser um gesto positivo na relação Brasil-Argentina. O ministro de Minas e Energia brasileiro, Alexandre Silveira, destacou que o acordo se baseia em “emprego, renda, desenvolvimento econômico e sustentabilidade”, tentando minimizar disputas políticas. Contudo, o contexto diplomático revela que os desafios vão além do pragmatismo econômico.
De um lado, o presidente brasileiro Lula mantém uma postura alinhada a metas globais de sustentabilidade, como a Agenda 2030 da ONU e a transição energética. Do outro, Javier Milei, presidente argentino, critica essas iniciativas, afirmando que interferem na soberania nacional e representam “caprichos de políticos de barriga cheia”. Essas divergências já se manifestaram na recusa de Milei em participar da COP29, sinalizando uma oposição clara à agenda climática defendida pelo Brasil.
O impacto do G20 na relação bilateral
A cúpula do G20 no Rio de Janeiro trouxe momentos emblemáticos que expuseram as diferenças entre os líderes. O encontro inicial entre Lula e Milei foi marcado por um aperto de mão frio e uma pose para foto sem sorrisos. Apesar disso, Milei cedeu à pressão internacional e aderiu à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, endossando também os compromissos de transição energética da declaração final.
Segundo Matheus de Oliveira, doutor em relações internacionais, a adesão argentina foi estratégica para evitar o isolamento político, já que a aliança reúne mais de 100 adesões globais. Mesmo assim, o governo Milei se apressou em afirmar que não apoiará medidas que aumentem a pressão fiscal ou limitem a exploração de recursos naturais, reiterando seu compromisso com um capitalismo de livre mercado.
Divergências ideológicas no centro da tensão
A postura de Milei, frequentemente comparada ao “trumpismo”, é vista como um dos principais fatores de tensão. Rodrigo Reis, do Instituto Global Attitude, destaca que Milei busca minar instituições multilaterais e adota uma abordagem conservadora e nacionalista que pode influenciar outras lideranças na América Latina.
Essa orientação, que aproxima a Argentina dos Estados Unidos, preocupa o Brasil, especialmente no contexto do Mercosul. A possibilidade de acordos bilaterais entre Argentina e EUA que excluam outros membros do bloco poderia intensificar as tensões regionais.
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Gabriela Sabino, especialista em relações governamentais, reforça que essa dinâmica não apenas afeta o Mercosul, mas também contribui para um cenário mais polarizado na América Latina, dificultando a cooperação regional.
O simbolismo de Vaca Muerta
Nem mesmo o acordo de gás com Vaca Muerta conseguiu aliviar o clima. O campo de gás argentino, um dos maiores do mundo, representa uma oportunidade estratégica para a integração energética na região. No entanto, o simbolismo desse acordo foi ofuscado pelas diferenças ideológicas entre os presidentes.
A colaboração técnica, costurada por ministros de ambos os governos, é uma tentativa de separar questões econômicas das disputas políticas. Mas, como afirma Alexandre Silveira, “o mundo anda muito extremado”, e esse extremismo se reflete nas dificuldades de construir uma relação mais harmônica entre os dois países.
O futuro da relação Brasil-Argentina
A relação entre Brasil e Argentina continuará a ser testada nos próximos anos. Com a COP30 marcada para 2025 no Brasil, será interessante observar como Milei lidará com a pressão internacional para participar de discussões climáticas, dado seu histórico de rejeição a essas pautas.
Além disso, o Mercosul poderá ser um termômetro para as relações bilaterais. Caso o governo argentino opte por acordos que enfraqueçam o bloco, a postura brasileira será decisiva para a manutenção da estabilidade regional.
Em um momento em que o mundo enfrenta desafios globais como a fome e a crise climática, o diálogo entre os dois maiores países da América do Sul será essencial. Contudo, como demonstrado no G20, superar as diferenças exigirá mais do que acordos pontuais; será necessário um esforço conjunto para construir confiança e cooperação duradouras.