Reconhecimento facial em estádios: segurança ou ameaça à privacidade?

A adoção de tecnologias de reconhecimento facial em estádios brasileiros, prevista pela Lei Geral do Esporte (Lei n.º 14.597/2023), tem gerado discussões acaloradas. Implementada como uma ferramenta para aumentar a segurança e melhorar a gestão de grandes eventos esportivos, a tecnologia promete autenticar a identidade dos torcedores de forma eficaz. No entanto, críticas relacionadas à privacidade, discriminação e uso indevido de dados têm se intensificado à medida que a data limite para a implementação se aproxima.

A Lei e o Projeto Estádio Seguro

A legislação brasileira determinou que, até 2025, todos os estádios com capacidade superior a 20 mil torcedores devem adotar sistemas de reconhecimento facial. Em setembro de 2023, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em parceria com o Ministério da Justiça, lançou o Projeto Estádio Seguro. Esse projeto busca ampliar o uso de tecnologias biométricas não apenas para controle de identidade, mas também para garantir a segurança pública.

Essas medidas, no entanto, despertam receios quanto ao aumento da vigilância nos espaços públicos, levantando a questão: a que preço a segurança dos torcedores está sendo garantida?

Discriminação e erros de identificação

Estudos apontam falhas preocupantes nos algoritmos de reconhecimento facial. Uma pesquisa de 2018 revelou que mulheres negras são as mais afetadas por esses erros, com uma taxa de falhas de 34,7%, enquanto homens brancos apresentam um erro de apenas 0,8%. Esses dados trazem à tona o risco de discriminação, especialmente em um país como o Brasil, com forte diversidade racial.

Erros de identificação podem resultar em situações graves, como abordagens violentas ou detenções equivocadas de torcedores. Em 2019, nos arredores do estádio do Maracanã, o uso de câmeras de reconhecimento facial levou à prisão de 11 pessoas, das quais 7 não tinham mandado de prisão ativo. A margem de erro revela a vulnerabilidade dos sistemas e o impacto potencial sobre a experiência dos torcedores.

Uso de dados biométricos de crianças

O debate sobre o reconhecimento facial em estádios é apenas uma faceta de uma discussão maior sobre o uso de tecnologias de vigilância em espaços públicos. | Foto: Reprodução/Canva
O debate sobre o reconhecimento facial em estádios é apenas uma faceta de uma discussão maior sobre o uso de tecnologias de vigilância em espaços públicos. | Foto: Reprodução/Canva

Outro aspecto crítico diz respeito ao cadastramento biométrico de crianças e adolescentes que, em alguns casos, tem sido feito de maneira indevida. No estádio Hailé Pinheiro, em Goiânia, cerca de 30 mil torcedores cadastrados possuem entre dois e 14 anos, um número que contraria as diretrizes estabelecidas pela própria Lei Geral do Esporte.

A legislação só autoriza o controle biométrico para maiores de 16 anos, enquanto a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reforça que o uso de dados pessoais só deve ocorrer a partir dos 18 anos. A coleta desses dados de menores é alarmante, especialmente pela falta de regulamentação clara quanto ao uso e ao tempo de armazenamento dessas informações.

Leia também: Veja o top 10 jogadores de futebol mais valiosos do mundo

Preocupações com a privacidade e uso indevido de dados

Com o aumento da adoção dessa tecnologia em estádios, surge uma questão fundamental: como garantir que os dados biométricos dos torcedores sejam protegidos adequadamente? O intercâmbio de dados entre empresas que administram os sistemas de reconhecimento facial e a falta de transparência sobre os mecanismos de proteção de dados alimentam temores de vazamentos e usos indevidos.

Os torcedores podem estar expondo seus dados sensíveis a empresas sem garantias de que essas informações não serão usadas para fins comerciais, como o direcionamento de propagandas. Além disso, ainda não há clareza sobre por quanto tempo esses dados podem ser armazenados e quais medidas de segurança estão sendo adotadas para evitar acessos não autorizados.

Nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, a tecnologia de reconhecimento facial não foi utilizada justamente devido ao seu potencial risco de vigilância indevida, destacando que, apesar dos avanços tecnológicos, a preocupação com o respeito à privacidade ainda é central em eventos de grande porte.

A militarização do espaço público

A implementação de tecnologias de vigilância em estádios faz parte de um movimento mais amplo de securitização – transformação de determinadas questões sociais em temas de segurança, resultando em uma maior presença do Estado ou de empresas privadas no controle e monitoramento dessas áreas – da sociedade brasileira. A centralização dessas decisões no Ministério da Justiça, sem a participação direta do Ministério dos Esportes, sinaliza um foco crescente na militarização dos espaços públicos. O lazer, outrora o principal atrativo dos estádios, agora divide espaço com câmeras e catracas que transformam os estádios em ambientes de monitoramento constante.

Com a adoção dessa tecnologia, os estádios brasileiros estão se distanciando da experiência cultural e de lazer, transformando-se em ambientes de vigilância que colocam a segurança pública acima da privacidade e dos direitos individuais.

Qual o futuro da biometria facial nos estádios?

A promessa de maior segurança com o uso de reconhecimento facial em estádios é inegável, mas os desafios não podem ser ignorados. O potencial de discriminação, os erros de identificação e as preocupações com a privacidade são questões que precisam ser tratadas com urgência antes que a tecnologia seja amplamente implementada. Além disso, a falta de regulamentação clara e o uso inadequado de dados biométricos, especialmente de crianças, indicam que o caminho ainda é longo para equilibrar segurança e direitos individuais.

O debate sobre o reconhecimento facial em estádios é apenas uma faceta de uma discussão maior sobre o uso de tecnologias de vigilância em espaços públicos. A sociedade brasileira precisará decidir até qual ponto está disposta a ceder sua privacidade em nome da segurança e como garantir que os avanços tecnológicos respeitem os direitos humanos.

Atualize-se.
Receba Nossa Newsletter Semanal

Sugestões para você