O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, ameaçou no final de novembro impor tarifas de 100% sobre produtos dos países do Brics, grupo de economias emergentes, incluindo o Brasil, caso esses países tentem substituir o dólar por outra moeda em transações internacionais.
Trump escreveu em sua plataforma Truth Social: “A ideia de que os países do Brics estão tentando se afastar do dólar enquanto ficamos parados assistindo acabou.” Ele afirmou que os países do Brics precisam se comprometer a não criar uma nova moeda nem apoiar qualquer outra moeda para substituir o dólar. Caso contrário, enfrentariam tarifas de 100% e perderiam acesso ao mercado dos EUA.
Ele também disse: “Eles podem procurar outro ‘otário’. Não há chance de o Brics substituir o dólar americano no comércio internacional, e qualquer país que tente terá que dizer adeus aos Estados Unidos.”
Além do Brasil, o Brics inclui África do Sul, China, Índia, Rússia, Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia. O Brasil assumirá a presidência do bloco em janeiro de 2025.
Os EUA são o segundo maior destino das exportações brasileiras, atrás apenas da China, e o principal destino das exportações de produtos manufaturados. Em 2023, o Brasil exportou US$ 36,9 bilhões para os EUA, enquanto para a China foram US$ 104,3 bilhões. As importações dos EUA para o Brasil somaram US$ 38 bilhões.
Se Trump cumprir a ameaça, as tarifas de 100% tornariam mais difícil para os produtos brasileiros entrarem no mercado americano. A equipe de transição de Trump não deu detalhes sobre os planos, e o Brasil ainda não se pronunciou oficialmente sobre as declarações.
José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), disse à BBC News Brasil que a ameaça é preocupante, pois tarifas de 100% poderiam dobrar os preços dos produtos e reduzir a demanda. No entanto, ele considera improvável que os EUA realmente adotem tarifas tão altas.
Essas declarações fazem parte de uma série de ameaças de Trump sobre tarifas a parceiros comerciais. O presidente eleito também afirmou que pode impor tarifas de 25% sobre produtos do Canadá e do México, além de 10% sobre produtos da China, para forçar esses países a controlar o ingresso de drogas e imigrantes ilegais nos EUA. Seu primeiro mandato (2017-2021) foi marcado por uma guerra comercial com a China.
Debate sobre outras alternativas ao dólar
A referência ao Brics ocorre em um momento em que o bloco está debatendo a desdolarização, em meio a críticas ao sistema financeiro global e à governança de entidades como o Banco Mundial e o FMI.
A supremacia do dólar oferece vantagens econômicas e geopolíticas aos EUA. O interesse por alternativas ao dólar cresceu desde que os EUA intensificaram as sanções financeiras após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.
A criação de uma moeda única para transações comerciais dentro do Brics poderia reduzir a dependência do dólar, mas, por enquanto, o foco está no estímulo ao uso de moedas locais no comércio.
O Brics possui seu próprio banco, o Novo Banco de Desenvolvimento, que financia projetos em moedas locais e é liderado pela ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, que já criticou o uso do dólar como uma ferramenta de poder.
Apesar das críticas à hegemonia do dólar no comércio internacional e do desejo de diminuir a dependência da moeda americana, não há perspectiva de adoção de alternativas para transações dentro do bloco no curto prazo.
A ideia de criar uma nova moeda sequer é mencionada nas declarações das cúpulas do Brics. Após as ameaças de Trump, o governo da África do Sul deixou claro que não há planos para a criação de uma moeda própria do Brics.
Nesse contexto, a advertência de Trump foi criticada por sugerir que a confiança no dólar estaria em risco.
“Uma moeda do Brics é apenas uma ideia, não uma realidade”, afirmou à BBC News Brasil o professor Daniel McDowell, da Universidade de Syracuse, autor do livro Bucking the Buck: US Financial Sanctions and the International Backlash Against the Dollar.
“Se você acredita que a única forma de manter os países usando o dólar é com ameaças, isso seria um problema. Não acho que seja a situação do dólar. Os EUA não precisam de ameaças para que o dólar continue sendo a moeda mais importante do mundo”, afirmou McDowell.
Não há sinais de que a hegemonia do dólar esteja ameaçada, especialmente em um momento de forte desempenho da economia dos EUA e de elevado risco geopolítico global.
O dólar continua sendo a principal moeda de reserva internacional. De acordo com o FMI, os bancos centrais ao redor do mundo possuem quase US$ 7 trilhões (mais de R$ 42 trilhões) em reservas na moeda americana, o que representa 58% do total, três vezes mais do que as reservas em euros, que ocupam o segundo lugar.
“A posição dos Estados Unidos e a importância do dólar são tão fortes que é muito difícil para os países se afastarem”, afirmou à BBC News Brasil o economista Alan Deardorff, professor da Universidade de Michigan.
“Se Trump utilizar todas as tarifas que mencionou, existe o risco de isolar os EUA da economia mundial e tornar o dólar menos útil para outros países. Isso poderia reduzir a dependência do dólar, que é justamente o que ele quer evitar”, afirmou Deardorff.
China e Rússia, membros do Brics, reagiram às ameaças do presidente eleito dos EUA.
Um porta-voz do Kremlin afirmou que, caso os EUA usem “força econômica” para obrigar os países a utilizarem o dólar, isso poderia “fortalecer ainda mais a tendência de mudança para moedas nacionais no comércio internacional”.
Já um porta-voz da Embaixada da China nos EUA declarou à imprensa americana que os EUA têm usado há muito tempo a hegemonia do dólar “como uma ferramenta geopolítica”, o que “prejudica a estabilidade econômica e financeira internacional e perturba a ordem global”.
Negociação e impactos
A retórica de Trump faz parte de sua estratégia de negociação, sendo usada para persuadir outros países a atender aos interesses dos Estados Unidos. Após suas ameaças contra o Canadá e o México, os líderes desses países rapidamente buscaram conversar com o presidente eleito.
“Trump tem um histórico de utilizar tarifas e fez isso de maneira bastante dramática em seu primeiro mandato. No entanto, ele também recorre às ameaças para pressionar outros países a responderem”, afirma Deardorff.
“Neste caso (do Brics), é mais provável que ele use essa abordagem. Tarifas de 100% seriam uma medida excessiva e baseada em uma justificativa imprecisa. Não parece realista, e seria surpreendente se ele realmente levasse essa ameaça adiante”, complementa o professor da Universidade de Michigan.
De acordo com Deardorff, a opção mais provável é que Trump busque obter algum tipo de compromisso desses países.
“Promessas que seriam difíceis de serem cumpridas. Mas ele poderia alegar ter alcançado uma vitória com o uso dessa ameaça”, acrescenta.
McDowell também considera improvável que os Estados Unidos imponham tarifas de 100% aos países do Brics ou qualquer outro país.
“Não diria que é uma ameaça vazia, pois Trump tem um histórico de usar tarifas como instrumento de negociação. No entanto, acredito que essa ameaça seja exagerada”, diz o professor da Universidade de Syracuse.
“Ele pode até saber que o risco de uma moeda do Brics não é real, mas fazer essa ameaça agora e, dentro de alguns meses, afirmar que a moeda não aconteceu devido à sua ameaça”, sugere McDowell.
“Ele gosta de se mostrar vencedor, e isso pode ser parte de sua estratégia.”
Para Castro, da AEB, “mesmo que as declarações de Trump possam ter algum exagero, essa situação gera preocupação em geral”.
“O Brasil não tem preços competitivos, e uma sobretaxa faria com que nossos produtos ficassem ainda mais caros. Isso nos impediria de exportar, especialmente os produtos manufaturados”, explica.
Castro também destaca que a guerra comercial dos EUA com a China afeta o Brasil, que “poderia ser invadido por produtos chineses”. “A China transferirá para outros mercados, como o Brasil, o que deixaria de vender para os EUA”, observa.
Se os EUA realmente impusessem tarifas aos produtos do Brics, o impacto negativo também seria sentido na economia americana, com o fortalecimento do dólar e o aumento dos preços nos EUA, o que poderia ampliar o déficit comercial.
Isso resultaria em preços mais altos para os consumidores americanos, aumentando o risco de inflação e, consequentemente, a necessidade de elevar as taxas de juros.
“É certo que, quando se impõem tarifas sobre importações, isso eleva o preço desses produtos para os compradores nos EUA, muitos dos quais não são consumidores finais, mas empresas que utilizam esses insumos na sua produção”, explica Deardorff.
“Isso aumenta os custos e, portanto, os preços, não só dos produtos importados, mas também dos bens produzidos nos EUA.”
“Além disso, haveria retaliação, com os países afetados por essas tarifas provavelmente respondendo com tarifas próprias”, lembra McDowell, citando o caso da China desde 2018.
“Isso poderia resultar em uma guerra comercial mais intensa entre os países, o que não seria benéfico para ninguém.”
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